Sidney | Psicólogo e Arteterapeuta
ARTETERAPIA PARA PESSOAS VIVENDO COM HIV/AIDS.
Antonio Sidney Francisco e
Monica Salgado
Durante aproximadamente esses três anos de Arteterapia para soropositivos, lidamos com fluidez, tropeços, alegrias e frustrações. Hoje, sentimos que temos mais conhecimento e compreensão da dimensão psíquica e social que cerca a AIDS e seus portadores. Foi muito bom poder rever, de forma mais globalizada, todo esse caminho percorrido até agora e também o que aprendemos com o grupo e com a Instituição, para relatarmos neste artigo. Com certeza, o que nos motivou fazer essa escolha – Arteterapia com pessoas vivendo com HIV/AIDS – foi privilegiar o momento interno de cada um de nós. Momento especial, de estar sensível à possibilidade de conviver com o desafio, com a ameaça do nosso equilíbrio vital, convivendo com o lado talvez mais difícil da vida... a doença.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que enfrentávamos dificuldades, a motivação de estar frente a um trabalho pioneiro – já que não tínhamos conhecimento de nenhum trabalho que utilizasse a arte como instrumento terapêutico com pacientes soropositivos – empurrava-nos para a frente, aumentando nosso ânimo e minimizando qualquer percalço.
Assim, buscamos bibliografia especializada, conversamos com pessoas que, de alguma maneira, já haviam trabalhado com a AIDS, tentando compreender mais profundamente as reais necessidades do portador. Entramos concomitantemente em contato com nossa ansiedade, medos, expectativas e fantasias.
Certamente, pudemos contar com a colaboração e o incentivo da Instituição que escolhemos para atuar. O GIV – Grupo de Incentivo à Vida é uma ONG que presta serviços aos soropositivos e participa de movimentos nacionais e internacionais na luta contra a AIDS: prevenindo, conscientizando e dando suporte psicossocial necessário aos portadores, através de terapias individuais e grupais, ioga, massagens, cursos profissionalizantes, aulas de teatro, etc.
De um modo geral, o cenário previsto não foi encontrado. Esperávamos encontrar pessoas física e psiquicamente fragilizadas, o que não correspondeu totalmente à realidade, pois estavam sob controle de uma medicação muito potente e com acompanhamento médico bem regularizado. Atualmente, com os avanços da medicina, a infecção por HIV parece ter-se transformado numa condição crônica, o que relaxa a sentença de morte iminente, aliviando parte do infortúnio.
No início, também não tínhamos uma visão das particularidades dessas pessoas, de seus estilos de vida, percepção da realidade, modo de encarar o vírus no seu corpo, de se relacionar com o outro, fosse homem, fosse mulher.
Com o decorrer de nosso trabalho, pudemos conhecer e compreender melhor o indivíduo soropositivo. Um conhecimento adquirido lentamente, de forma cuidadosa, que sempre precisava ser revisto e reformulado. A novidade era uma constante. Se pensávamos que nos depararíamos somente com homossexuais, o dia a dia do nosso trabalho mostrava o contrário. A surpresa da frequência cada vez maior do vírus nas heterossexuais femininas, mostrava as várias faces e a mutação da realidade.
Sentimos a importância de estarmos atentos e abertos para o momento presente, quando acordes, diferentes daqueles que pensávamos encontrar, apareciam. Uma música sendo composta a cada instante... algumas vezes, nossos acordes se harmonizavam com o grupo e sons belíssimos eram extraídos. Outras vezes... tudo soava dissonante. O mais importante é que estávamos, a cada momento, aprendendo a nos relacionar com essa realidade.
Pudemos observar como esses indivíduos se tornam resistentes, física e psiquicamente para poderem esperar e ganhar tempo. Mesmo assim, persiste um sentimento de solidão e de segregação, talvez pela necessidade de manter sigilo da própria doença, o que os afasta muitas vezes da família, dos amigos e da sociedade.
Éramos surpreendidos por depoimentos de soropositivos que continuavam mantendo relações sexuais sem os cuidados necessários para se evitar a contaminação. De mulheres violentadas sexualmente por seus maridos portadores, sem que pudessem se rebelar ou questionar. E de outras, que, mesmo contaminadas, faziam questão de levar uma gravidez até o final. Deparar com este quadro dramático faz-nos refletir sobre nosso papel, enquanto profissional que trabalha junto às questões sociais que falam de valores, educação, autoestima, segregação e preconceito.
Percebemos que alguns participantes, após se saberem soropositivos, apresentavam, logo no princípio, um quadro com perturbações de ordem física e emocional. Neste período, são fundamentais o acompanhamento médico e a presença do grupo de referência, para dar o apoio, o afeto e a compreensão necessária para que o indivíduo consiga reestruturar-se de forma lenta, até que se adapte à nova realidade que tem pela frente. Passado este período de impacto, muitos reformulam seus valores pessoais, buscando atividades que lhes dão maior prazer e evitando o estresse que causa a diminuição das resistências e o aumento da carga viral. Reformulam seus relacionamentos, selecionando as amizades que realmente têm ressonância nas suas vidas e mantendo uma relação renovada com o tempo, não permitindo que pressões externas os forcem a fazer aquilo que já é sem sentido para eles.
Podemos também observar que o saber-se soropositivo impulsiona o indivíduo a posicionar-se frente às várias situações externas, o que de maneira sutil faz com que mudanças internas significativas aconteçam: o corpo se modifica e dá sinais de sobrecarga, necessitando de frequentes ajustes dos medicamentos; as relações humanas se transformam; os sentimentos afloram e lembranças e reminiscências do passado pedem para serem passadas a limpo, serem revisitadas com uma compreensão maior.
Neste sentido, em 1989, Sontag no livro AIDS e suas Metáforas, relata que a AIDS é a doença que representa uma censura genérica à vida e à esperança. De acordo com a autora, contrair AIDS equivalia a descobrir-se parte de um determinado “grupo de risco”, o que em algum momento teria que ser revelado, mudando, ou pelo menos transformando, as relações do indivíduo consigo mesmo, com o trabalho, com o parceiro, com a família e com a sociedade de um modo geral.
As pessoas que procuram a Instituição para portadores do vírus HIV pertencem, em sua grande maioria, a uma classe financeiramente menos privilegiada. Em geral, são homossexuais do sexo masculino e mulheres heterossexuais que foram contaminadas por seus parceiros. É comum uma certa desorganização familiar. Muitos, quando crianças, foram abandonados por seus pais, sendo criados por tios, avós ou outros parentes. Alguns tiveram uma relação muito boa com esses parentes, recebendo o carinho e a atenção que necessitavam. Outros não foram tão felizes assim, recebendo uma educação muito rígida que lhes exigia um comportamento adulto, com muitas responsabilidades e obrigações. Alguns foram violentados sexualmente por seus responsáveis, comprometendo seu desenvolvimento emocional.
Esses fatos sempre voltam nas sessões de Arteterapia e é muito importante que o soropositivo possa revivê-los, estabelecendo um novo diálogo com esse passado. Nas sessões, procurávamos incentivar as lembranças dessas situações, de forma que pudessem também ali reconhecer o positivo, o agradável, a felicidade. Quantas vezes, ao relembrar uma situação traumática e renegada da infância, essas pessoas puderam reconhecer e integrar partes agradáveis, até então desapercebidas. Não eram poucos esses momentos de boas lembranças: passeios com a família, partes da casa onde moravam, a natureza e a simplicidade da cidade onde viviam, a atenção recebida de alguém importante...
A utilização da arte como recurso terapêutico facilitou muito a introspecção dessas pessoas, levando-as a se conectarem consigo mesmas. No início, o simples escolher uma cor para pintar era difícil: as pessoas ficavam inseguras, desajeitadas e inibidas. Colocar as tintas no papel então, nem se fala, as mãos tremiam, ensejando sentimentos de vergonha e inadequação. Era como se fossem alunos no primeiro dia de aula.... Aos poucos, essa inibição foi dando lugar a uma liberdade associada a fatos de suas vidas que, muito lentamente, eram trazidos para as sessões.
Utilizamos vários materiais como tintas guache e plásticas, crayons secos e oleosos, argilas, velas, canetas coloridas, arames, barbantes, papéis de diferentes texturas, etc., sempre procurando buscar relações entre o contexto daquele momento e a familiaridade com esses materiais.

Esculturas de argila branca

Pintura com colagens
Artisticamente, pudemos perceber que, no início, era comum aparecerem desenhos totalmente negros, de dimensões pequenas e poucos detalhes; figuras colocadas no meio do papel com ausência de base, pareciam flutuar no ar. Aos poucos, as cores começaram a surgir. Em alguns, a repetição de temas, com poucas variações, ficava cada vez mais distante... surgiam desenhos novos, cada vez mais belos, nítidos e fortes! Assim como os desenhos, as pessoas iam tomando corpo e se expressando cada vez com maior segurança. Fases de um processo... etapas de uma história. “A expressão artística pode ser terapêutica quando experienciada como um processo, porque permite ao artista conhecer-se a si mesmo como uma pessoa inteira, dentro de um curto espaço de tempo”. Rhine (1978).
Em sua grande maioria, os trabalhos revelavam força, colorido e movimento. Os temas predominantes eram elementos da natureza, seres humanos, animais e cenas de uma infância que, mesmo tendo sido traumática, estava investida de menos medo e preocupação do que o momento atual. Contrariamente ao que havíamos pesquisado, referente ao período em que a doença ainda estava sem controle e muitos portadores morriam, não pudemos observar trabalhos que fizessem alusão à morte e decadência física.

Processo de desenho e pintura com pincel

Pintura a guache com as mãos
Na história de cada um, aparece um mesmo personagem – a princípio negado. Trava-se uma luta interna diária para que ele não mostre sua cara, não se pronuncie... Luta inglória! Aos poucos, vai aparecendo, fazendo parte e transformando a vida de cada um. Esse personagem, tão temido, tem nome: AIDS!
Essas pessoas se encontram, quase sempre, fragilizadas, carentes de atenção, carinho, respeito, contato físico e amor, por sua condição marginalizada. “Na visão existencial, o homem é visto como estando sempre em possível estado de refazer-se, capaz de, com awareness, escolher e organizar sua própria existência”. Ciornai (1988). Na concepção de Yontef (1998) “awareness total é o processo de estar em contato vigilante com os eventos mais importantes do campo indivíduo/ambiente, com total apoio sensório motor, emocional, cognitivo e energético”.
Muitos começam as sessões, mas poucos permanecem até o fim. Cabe aqui ressaltar que nosso trabalho tem enfoque no desenvolvimento de um processo e, nesse sentido, uma sessão está atrelada à outra, isso se estendendo à escolha dos materiais artísticos. Durante o processo, tínhamos que lidar com as constantes ausências das pessoas nos grupos, ocasionadas tanto pelas dificuldades no estabelecimento de vínculos, como por questões físicas causadas pelas doenças oportunistas. O processo normalmente leva a um afunilamento, fazendo com que as pessoas entrem em contato com seus conteúdos mais íntimos, diretamente relacionados à contaminação. Para alguns é mais fácil, um desafio, uma busca, uma aventura. Estes vêm às sessões e realizam trabalhos artísticos que se desenvolvem plasticamente, passo a passo. Outros sentem a conscientização de forma dolorida e o único remédio é a fuga. Buscam na Instituição apenas eventos sociais que preencham o vazio que sentem.
Um preparo teórico é fundamental para compreender melhor todos os conteúdos expressos através da arte. Neste sentido, a Gestalt Terapia, com seus pressupostos teóricos aliados à arte, ajudou-nos a compor um espaço terapêutico e um clima propício à manifestação de autoconsciência.
Não basta um preparo técnico, muitas vezes foi o silêncio que mais nutriu a todos nós. Estar em sintonia com as necessidades do soropositivo é uma condição básica para o trabalho. Também é importante reconhecer as qualidades e o potencial criativo que se oculta dentro de cada um, como semente para o desenvolvimento da autoestima e da confiança em si, nos outros e no mundo.
O trabalho de Arteterapia que desenvolvemos no GIV tem uma configuração de atelier terapêutico. Nele as pessoas são estimuladas a se exporem, entrarem em contato com as suas realizações tanto no nível corpóreo, como no nível da expressão artística. Em todo processo de grupo, e aqui também, a confiança vai, aos poucos instalando-se entre as pessoas, favorecendo que falem cada vez mais de si, criando uma liberdade para se tocarem através das palavras e do corpo. Cabe observar que aqueles que faziam psicoterapia individual beneficiavam-se mais, em termos de desenvolvimento.
Percebemos que, em geral, os participantes do grupo apresentavam dificuldades em sintonizar seu próprio corpo. Exibiam muita rigidez, posturas limitadas e empobrecidas de movimento e projeção do espaço. Alguns verbalizavam que tinham muitas dificuldades em sentir partes de seu corpo, passando por incômodo e dores. A cabeça era a parte do corpo mais presente nos trabalhos artísticos. Concluímos que, em Arteterapia com pessoas que convivem com HIV/AIDS, é muito importante um trabalho corporal que amplie o conhecimento do próprio corpo, integrando partes esquecidas, conhecendo seus pontos de tensão e modos de relaxamento. Muitos trabalhos artísticos foram feitos pedindo que se desenhassem os pés, as mãos, os ombros, para torná-los mais vivos e conscientes. Uma ampliação do espaço vital através da conscientização corporal! Sentíamos que o peso da condição de se saber soropositivo estava concentrado na cabeça e precisava ser repartido com as outras partes do corpo. Oaklander (1980) ressalta a importância de o adulto aprender a relaxar, aliviando tensões, podendo mais facilmente expressar a fonte da sua tensão.
A experiência nos mostrou que, em uma Instituição, é fundamental desmistificar o trabalho terapêutico com arte. É comum, nesse contexto, que as pessoas associem este tipo de trabalho com práticas ocupacionais e produção de artesanato, não conseguindo avaliar o espírito verdadeiramente terapêutico da arte. Foi preciso mostrar que Arteterapia não é aula de artesanato nem Terapia Ocupacional, como as pessoas pensavam de imediato. Desde as primeiras Oficinas de Demonstração – abertas a todos integrantes da Instituição, inclusive diretores, voluntários e futuros pacientes – mostrávamos que cada trabalho teria um desdobramento nas próximas sessões, enfatizando a importância do processo terapêutico no gradativo crescimento individual e grupal.
Acreditamos que esse trabalho facilitou o crescimento pessoal dos participantes, fazendo com que se apropriassem de suas vidas, descobrindo que, apesar do vírus, poderiam viver bem consigo mesmos e com os outros. Semeamos na Instituição a importância da arte e seus efeitos terapêuticos no processo do autoconhecimento.
Contamos com a colaboração amorosa e solidária de supervisores e colegas, buscando juntos ideias e soluções para os impasses. Festejamos juntos os momentos felizes frente aos acertos!
O desafio ainda está aí... como a AIDS... como a própria vida, cada dia revelando particularidades, avanços e recuos. É um trabalho que precisa ser construído em conjunto: Instituição, corpo de profissionais e grupo de pacientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIORNAI, Selma. Arteterapia Gestáltica: Uma Abordagem Fenomenológica – Existencial. Rio de Janeiro: 1988.
OAKLANDER, Violet. Descobrindo Crianças – A Abordagem Gestáltica com Crianças e Adolescentes. São Paulo: Summus. 1980.
RHYNE, Janie. Trechos selecionados de: Expandindo nossa compreensão das imagens visuais. Los Angeles: 9ª Conferência Anual da AATA. 1978.
SONTAG, Susan. Aids e suas Metáforas. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.
YONTEF, G.M. Processo, Diálogo e Awareness. Ensaios em Gestalt-Terapia. Summus Editorial. São Paulo: 1998